terça-feira, 2 de setembro de 2014

NÃO EXISTE MACONHA MEDICINAL, AS EVIDÊNCIAS SÃO CADA VEZ MAIS CONSISTENTES

Acompanho há 40 anos os efeitos psiquiátricos da canábis. Estagiando em Londres, meu primeiro paciente havia recebido o diagnóstico de Psicose Canábica. Para mim, tratava-se de um caso de esquizofrenia, apenas precipitado pelo uso intenso de maconha. Nos primeiros anos da minha carreira, atendi diversos jovens com a mesma história e apresentação. Ultimamente me surpreendo com o açodamento em promover a liberalização do uso da maconha (e outras preparações com altos teores de THC), justamente quando as evidências são cada vez mais consistentes de uma relação direta com graves problemas de saúde geral e mental.

Argumentos como “maconha medicinal é imperativo humanitário”, “perdemos a guerra para o tráfico”, “é mais seguro que tabaco e álcool”, “faltam provas de que tais efeitos são devidos à canábis”, “quem tiver problema pode optar por se tratar”, “uso de drogas é problema da Saúde”, me parecem fruto de desinformação ou deliberadamente enviesados. Enquanto isso é debatido e amplamente divulgado por todos os meios de comunicação, o consumo dessas substâncias é crescente, especialmente entre os jovens – exatamente os mais vulneráveis. Como especialistas, temos que alertar a sociedade para os riscos imediatos para a Saúde Pública decorrentes da atual situação.

O ano de 2002 marca, para mim, o ponto de inflexão na postura responsável de um profissional de saúde mental informado. Em três anos, uma série de publicações de estudos prospectivos indicando aumento no risco relativo ajustado de psicose esquizofreniforme (não-afetiva) realizados na Suécia, Nova Zelândia, Holanda, Alemanha e Israel foi um alerta como jamais havíamos tido. Taxas duas a três vezes maiores para psicoses potencialmente irreversíveis com uso frequente e precoce foi o que mais chamou minha atenção. Hoje, conforme o quadro anexo, essas taxas são ainda maiores (Quadro 1). Escrevi, em 2003, um editorial sobre isso naStress Medicine, intitulado “Cannabis Psychosis – smoke and fire”. Quem acompanha a vida de jovens como os que atendi no começo da minha carreira ou o personagem (irmão) do filme de Lucia Murat , “Uma longa viagem” (2012), sabe que a única esperança é a detecção precoce e abstinência imediata. Pouco, porém, me parece ter sido feito até que o debate esquentou com o movimento internacional de liberação do uso “medicinal” em vários estados americanos e recreativo no Uruguai, no Colorado e em Washington, amplificado desde fins da última década, com a entrada de eminentes políticos nesse movimento, altamente orquestrado.

E o que sabemos hoje? Alterações cognitivas potencialmente irreversíveis (“demenciais”, portanto), com prejuízo para aprendizado e desempenho profissional relevante, psicoses esquizofreniformes (podemos denominar alguns desses quadros como síndromes esquizofrênicas ou esquizoafetivas, uma vez que componentes causais não devem excluir tais diagnósticos, como se exigia para as “psicoses endógenas”), depressão e ansiedade (detectadas em estudos prospectivos em mulheres jovens), transtorno esquizotípico de personalidade, dependência (hoje não exigimos mais delirium ou convulsão para falarmos em dependência física) que, juntamente com as alterações de pensamento, motivação, juízo e crítica dificultam sobremaneira a adesão aos tratamentos disponíveis, co-morbidade com outras patologias, e uso concomitante de outras substâncias psicoativas, com somação de efeitos, entre outros. Tudo isso agravado pelos altos teores de THC (e de outros componentes menos explicitados) nas preparações atuais, com relação dose-resposta, por exemplo, para as psicoses. Na saúde geral, além dos conhecidos efeitos respiratórios, a Sociedade Americana de Cardiologia emitiu este ano um alerta geral para os riscos vasculares cardiológicos, cerebrais e periféricos, responsáveis por notável aumento de atendimentos de emergência nos Estados Unidos.

Legalizar vai abalar o tráfico? Onde estão as evidências disso? De qualquer forma, essa não é uma questão primordial nesse mundo corrompido e combalido em que vivemos. Se nossos líderes se consideram vencidos, devemos seguir sua sugestão de rendição? Do ponto de vista da Saúde, é preciso lembrar que não temos cura para muitos desses graves problemas. Dizer que isso ocorre em organismos vulneráveis nada muda: tais vulnerabilidades não podem, ainda, ser detectadas pela Ciência ou pela Medicina. Prevenção primária raramente é possível em Saúde Mental e aqui é a nossa melhor opção. Como tem sido dito e repetido, mas parece que nunca é suficientemente compreendido: defender o uso de alguns canabinóides com ação terapêutica demonstrada (ou mesmo razoavelmente presumida) para quadros específicos, resistentes a outros tratamentos, ou seu desenvolvimento como medicamento para outras finalidades, nada tem a ver com o uso de preparações totais da planta. Não existe maconha medicinal. Expor a população, especialmente os jovens, a agentes que participam da gênese ou precipitação de patologias incuráveis, com potencial de deixar sequelas irreversíveis ou provocar morte súbita é irresponsável e incompatível com a tradição e a ética médica.

Fonte: Uniad

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